domingo, março 27, 2022

LEONARDO DA VINCI (1452/1519)

No canal Homem de Honra, no Youtube, achei um vídeo com diversos pensamentos/opiniões de Leonardo Da Vinci. Selecionei o que tem ligação com nossa realidade e acrescentei um pequeno comentário

"O estudo sem desejo estraga a memória e não retém nada do que absorve."

[Este se aplica ao volume de informação que nos empurram pelas redes sociais?]


"Nada fortalece tanto a autoridade quanto o silêncio."

[Hummm!!! Será que estamos silentes?]


"Eu amo aqueles que podem sorrir em apuros, que podem sentir força na angústia e se tornar corajosos pela reflexão."

[Estamos refletindo sobre o que acontece no phoder? Falta-nos coragem para reagir?]


"A maior decepção que os homens sofrem é com suas próprias opiniões."

[Penso que muitos deveriam estar deixando de serem ventríloquos de falas alheias e criarem suas próprias visões e opiniões.]


"É mais fácil resistir no começo do que no final."

[Há que agirmos agora, antes que amarguemos uma covardia que nos condenará.]


"Perceba que tudo se conecta a todo o resto."

[STF com TSE, Senadores com Ministros do Supremo, Sindicatos com ONGs, Magalu com PT, artistas com Lei Rouanet, grande mídia com verbas públicas, jornalistas com manutenção de seus empregos, ...]


"Todo conhecimento tem origem em nossas percepções."

[Mas nossas percepções são obtidas somente dos fatos que "eles" querem nos apresentar e como querem apresentar. Fique esperto.]


"Acordei apenas para ver que o resto do mundo ainda estava dormindo."

[Eu me sinto assim, mas estou tentando fazer algum barulho para tirar um ou outro do sono, porque já é hora de acordar.]


"Nada pode ser amado ou odiado sem antes ser conhecido."

[Esta é a mensagem para aqueles que dizem (e me disseram) que "odeiam" estando tão distante do conhecimento do alguém odiado quanto uma formiga de Alfa Centauri.]


"Não punir o mal equivale a autorizá-lo."

[É o que nossos iluministros vêm fazendo há mais de 3 anos.]


"Pobre é o aluno que não supera seu mestre."

[Desesperador saber que os jovens de hoje são impedidos/proibidos de se arriscarem a ser melhor que seus "mestres".]


quinta-feira, março 03, 2022

PARA O BEM DOS MEUS DESEJOS

"Quando o sol da cultura está baixo, até os anões lançam longas sombras."

Karl Kraus, dramaturgo, jornalista, ensaísta, aforista e poeta austríaco. 

 Assista este breve vídeo antes de ler o artigo.


Não tenho dúvida de que aqueles que imaginam existir uma alternativa estão praticando uma cegueira voluntária, tal como Étienne de Lá Boétie[1] visualizou a servidão de um povo em algum momento de sua História. Não fazem por mal, não fazem por burrice, nem mesmo por falta de informação. É tão somente uma recusa em enxergar fatos que possam provar que estão errados. É humano, pois reconhecer que se passou anos acreditando em uma mentira fere dolorosamente o orgulho. Poucos são aqueles que conseguem superar o sentimento de vergonha interior que isso causa.


Tal como em outros países, periodicamente somos convocados a exercer o direito, e no nosso caso, a obrigação de votar, mas aqui acontece um fenômeno que há muitos anos vemos no comportamento de eleitores que proclamam estarem cansados, frustrados, decepcionados com a política e os políticos. No dia da eleição, uns nem saem de casa, pois são os que “não gostam de política” e irão compor a taxa de abstenção (eles apenas esquecem que viverão sob as decisões dos que forem eleitos pelos que gostam). A outra parte até se dirige à seção eleitoral, mas imbuídos de uma rebeldia adolescente, ilógica e hipócrita. Entre estes, há os que se “eximem de responsabilidade” e votam em branco, ou anulam o voto digitando um número inexistente na lista de candidatos. No passado, quando escrevíamos o nome do candidato em uma cédula, alguns votavam em personagens fictícios como o “Cacareco”[2] em 1959. Com o fim das cédulas, os rebeldes passaram a dar o voto a personagens reais, mas folclóricos, como Tiririca, Juruna, e Alexandre Frota, o ator de filmes pornográficos, ou até mesmo em indivíduos de conhecida e extensa ficha corrida[3]. Neste 2022, depois de constatar que a aposta em 9Fingers é como comprar carro usado do “maior corrupto que este país já teve”, os perdedores inventaram uma terceira via - uma ideia-panaceia salvadora - na esperança de conseguirem enfiar na goela de quem possa estar com Tico & Teco em recesso e assim angariarem uma quantidade de votos que os elejam.

Feita esta necessária introdução, vamos à franqueza amarga e cínica de Ciro.

Em sua fala podemos identificar algumas informações absolutamente relevantes para avaliarmos o que está acontecendo especificamente no Brasil (abstraindo de fatores externos). A mais importante, obviamente, é a afirmação de que “temos de destruir Bolsonaro”. Nossas instituições estão tão absurdamente degradadas, apodrecidas, que um pré-candidato à presidência faz, este sim, um grave ataque aos princípios democráticas e o distribui em vídeo na Grande Rede sem que nenhuma entidade de governo ou privada, ou mesmo um cidadão de reconhecida credibilidade, venha a público rebater a absurda agressão a todos os cidadãos brasileiros. Este é o ponto, porque acusá-lo de estar promovendo um ataque ao Estado Democrático de Direito como, principalmente, nossos iluministros gostam de dizer, e pelo menos enquadrá-lo no “inquérito do fim-do-mundo”, não cabe, pois Ciro integra a lista dos possíveis escolhidos a sentar na terceira cadeira ou a entrar nas hostes de lambe-botas do decrépito, e claramente senil, 9Fingers, o “Sleeping Jo” dos trópicos. Nunca “na história deste país” vale tanto a regra do aos amigos todos os direitos e liberdades; aos inimigos a lei, e/ou a lacração, e/ou o cancelamento, e/ou a desmonetização, e/ou a prisão, ou tudo isso e mais umas bordoadas no cárcere.


Foto de comemoração do "acordão".
“Nós temos que destruir Bolsonaro” é o maior e mais claro ataque, este sim, às instituições democráticas. Maior até mesmo que o de Barroso ao criminalizar qualquer debate sobre a segurança das urnas eletrônicas. E quando ele usa o pronome “nós”, está querendo arrebanhar todas as vertentes do pensamento político que não se afinam com o liberalismo e o conservadorismo, ambos representados por Bolsonaro. Óbvio que fazem isso em proveito próprio! Tal construção fraseológica mostra o estado de total desespero dos perdedores de 2018, e é uma convocação para que todos se unam e, temporariamente, passem ao largo de todas as suas diferenças (afinal, é por um objetivo maior!). O que Ciro está vendendo é que 9Fingers está morto (só não deixam ele saber)[4] e, ipso facto[5], rei morto, rei posto, e “eu me apresento”. Na minha percepção, portanto, em prol da “destruição de Bolsonaro” está em processo um grande acordão, onde cada um (candidatos e partidos, a maioria abdicando de concorrer) irá apresentar/negociar suas “demandas” e, de acordo com as pesquisas, irá escolher quem concorrerá a que - na improvável vitória, todos serão aquinhoados com o atendimento ao que foi previamente estabelecido.

O que também precisa ser analisado, é a frase complementar “se não ele fica aí 8 anos!!!”. Esse é o desespero: ficar mais 4 anos à mingua, quiçá mais possíveis 8 anos! Eles precisam destruir Bolsonaro. É questão de vida ou hibernação por mais 12 anos! O instituto da  alternância de poder defendido por alguns democratas, significa para Ciro um “teatro das tesouras”, onde agora é minha vez, depois você, e depois eu “traveiz”. Repito, não se surpreenda se fizerem de tudo para acabar com a reeleição via um casuísmo qualquer a partir de já. Depois eles desfazem o feito. Tenho a impressão que estão até dando uns caraminguás para quem trouxer ideias para impedir Bolsonaro de ser candidato. Tentaram atribuir irregularidades na campanha da chapa Bolsonaro/Mourão; tentaram a CPI da COVID; impetraram mais de uma centena de pedidos de impeachment;  nada colou. Até aqui.

A intenção de votar numa terceira via, portanto, é brincar com as consequências de um regime corrupto-socinista. Alguém pode argumentar que nos quase 30 anos de regime liderado pela esquerda não foi tão ruim assim. Na superfície, com certeza. Na profundidade sequestraram a nação para satisfazer desejos próprios e você só está se dando conta agora. Foi um trabalho de profissionais do crime organizado, cujo único intelectual que denunciou o estrago que estavam fazendo na cultura foi Olavo de Carvalho[6]. É preciso entender que a geração que está em idade para chegar ao poder político foi “cultivada”, “prostituída” no “atrasismo”[7] das ideias do presidiário Gramsci, hoje um defunto exaltado no Brasil e... sei lá mais onde!. PSDB e PT sabiam o que estavam fazendo, no que estavam investindo (Olavo ressaltou que para eles "é mais importante solapar as bases morais e culturais do adversário do que ganhar votos"). Revolução do pensamento se faz dominando a cultura, no silêncio pra ninguém perceber. Os “produtos” humanos desta fábrica já estão aí, prontos e mal acabados,  agora precisam ir a mercado a preços módicos. Só isso. 

Encerrando, quero aproveitar para tratar um pouco da questão do controle da mídia insistentemente proclamado por 9Fingers, para desespero da claque petista. Controlar  que é dito ao povo sempre foi central para os governantes, mas depois do advento da era digitrônica, gerenciar/censurar a profusão de conteúdo e canais se tornou um processo sofisticadíssimo. Nós estamos muito assanhadinhos com o “poder de fala” que adquirimos. Quando tudo pode ser não só questionado, mas imediatamente questionado e propagado, controlar todas as mídias quanto ao que pode ou não pode ser falado, deve ou não deve ser publicado, é instrumento essencial para a permanência no phoder. “Malditas sejam as redes sociais”, vociferam os desejosos de poder absoluto. Os grandes players do mercado da comunicação no Brasil estão calados frente às ameaças de 9Fingers pelo simples fato de que pouco importa o que publicam, o que eles querem é o dinheiro do Estado, seja o dono do veículo, seja o profissional das redações. Esse negócio de liberdade de opinião é falácia para embalar povo, veículos de comunicação se lixam pra isso. Basta lembrar os quase 200 jornalistas da Folha que assinaram uma “carta aberta à direção”[8] pedindo a censura do que não querem ver publicado, como as opiniões expressas em um artigo do historiador Antonio Risério, que lembrou o óbvio: existem negros que praticam racismo contra brancos! E neste exemplo real se revela o cruel mundo que se avizinha: jornalistas não se importam em vir a ser censurados pelo Estado, pois entendem ganhar aval para censurarem o que bem desejarem, para o bem de $eus$ desejos.

É isso. Fique mais atento e, se for o caso, coragem para reconhecer eventuais avaliações erradas passadas.


2022! 2 passos à frente, nem 1 passo atrás!


[1] Conheça aqui o “Discurso da Servidão Voluntária”.

[2] Saiba quem foi neste link.

[3] Em 2018, foram cerca de 147 milhões de eleitores, sendo que na eleição para presidente só foram computados votos de 73% deles. 40 milhões de eleitores, de algum modo, não exerceram o voto.

[4] Se você não concorda com essa minha percepção, veja este pequeno vídeo.

[5] Expressão latina que significa “como consequência natural desse fato”.

[6] Em “A Nova Era e a Revolução Cultural” ele diz: “Um grupo de ativistas sem escrúpulos apropriou-se dos meios de difusão cultural para fazer deles o trampolim de suas ambições políticas, fechando os canais por onde pudessem fazer-se ouvir as vozes adversárias e impondo a todo o País a farsa gramsciana da “hegemonia”.

[7] Essa é minha proposta para rotular mais apropriadamente a filosofia da esquerda que se autodefiniu como “progressista” quando o pacote de ideias que apregoam só resultariam, se implantada, num grande atraso civilizacional.

[8] Acesse esta matéria do Jornal da Cidade sobre o evento.

_____________________________________________________________________________________________

LEMBRE-SE: 

O objetivo principal deste blog é expor a hipocrisia que nos cerca e envolve, nos cega e conduz, e nos ajuda a tocar a vida de um jeito "me engana que eu gosto".

terça-feira, fevereiro 22, 2022

HUMANOS DESUMANOS


Hoje não tem texto meu, pois organizando arquivos no computador, encontrei "Extratos de Revista Piauí 2018" contendo notas extraídas de artigos publicados naquele ano e um de jan/2019 (época em que ainda era uma publicação que valia a pena ler). Todos os artigos contêm reflexões que podem ajudar a entender melhor com o que estamos convivendo e fazer um exercício sobre quais poderão vir a ser as consequências para nossa vida em futuro próximo.

Chamo atenção para as notas do artigo "O pior está por vir", de Anne Applebaum, uma jornalista e historiadora americana. Ela conta algumas coisas sobre política no período em que viveu na Polônia.

O último artigo, de jan/2019, "Genocídio no Brasil", é do jornalista inglês Norman Lewis.  É uma reportagem publicada no Sunday Times Magazine em 1969, e depois publicado no livro A View of the World, pela editora Eland. Não o deixei por último à toa. Ele é a comprovação categórica da possível natureza desumana que podemos incorporar. Ao reler minhas notas um frio percorrendo a espinha foi inevitável.  Ao tentarmos descobrir as causas de tanta desumanidade em alguns humanos (desumanidade esta presente em toda a história de nossa civilização), somos levados a refletir sobre quais podem ser as razões de muitos de nós ser levado a agir com tamanha agressividade nas redes sociais. Eu NÃO recomendo a leitura por gente mais sensível.

Mas fora este último, creio que o Leitor vai poder viajar em reflexões relevantes.

 

Bom proveito!

 

 DEZEMBRO/18

 Artigo: El Salvador – a respeito da força e da fragilidade

Por: João Moreira Salles

Paul Ricoeur, pensador francês, em “O único e o Singular”: “Onde há poder, há fragilidade. E onde há fragilidade, há responsabilidade. Quanto a mim, diria mesmo que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos solicita, porque o frágil está, de algum modo, confiado à nossa guarda, entregue ao nosso cuidado.”

A desatenção é a primeira etapa da violência.

Alan Jacobs: “Nós que vemos o outro nas garras da aflição, nós somos obrigados, primeiro e acima de tudo, a prestar atenção”.

Ainda Jacobs: “Na ausência de empatia vem o descuido (na melhor hipótese) ou a selvageria (na pior).”

E: “A tentação do excesso é que é quase irresistível.”

Submetidos às tensões que o retiram da morada em que se sentiria amparado, não resta ao indivíduo desenraizado senão pensar segundo os termos de que dispõe, ou seja, os da violência e da força.

De um velho reitor da Universidade de Chicago: se êxito for a medida da justiça, o justo estará sempre do lado de quem tiver mais batalhões.

 

NOVEMBRO/18

Artigo: O Pior Está Por Vir


Por: Anne Applebaum (Americana, jornalista e  historiadora, casada com diplomata polonês)

Naquele momento (celebração de ano novo dez/1999), com a Polônia na iminência de se integrar ao Ocidente, tinha-se a impressão de que torcíamos todos pelo mesmo time. Concordávamos sobre a democracia, o caminho para a prosperidade, o rumo que as coisas estavam tomando.

Aquele momento passou. Decorridas quase duas décadas, cheguei a mudar de calçada para evitar algumas das pessoas que celebravam o ano 2000. por sua vez, elas não só se recusavam a entrar na minha casa como tinham vergonha de admitir que um dia a frequentaram. Na verdade, cerca de metade dos convidados nunca mais falaria com a outra metade.

Dadas as devidas circunstâncias, qualquer sociedade pode se voltar contra a democracia. Alias, a julgar pela história, todas as sociedades acabarão por fazê-lo.

Duas décadas atrás, diferentes interpretações de “Polônia” também já deviam estar presentes, à espera do momento de vir à tona, conforme as circunstâncias e em razão de ambições pessoais.

A quem cabe definir uma nação? E a quem, por conseguinte, cabe conduzir uma nação?

Monarquia, tirania, oligarquia, democracia: tudo isso era familiar a Aristóteles, há mais de 2 mil anos. Mas o regime antiliberal do partido único, ora encontrado em todo canto do mundo – considere-se a China, a Venezuela, o Zimbábue -. foi pela primeira vez desenvolvido por Lênin, na Rússia, a partir de 1917.

[Lênin será lembrado] não por suas convicções marxistas, mas por ter inventado esta persistente forma de organização política. Ela é o modelo pelo qual se pautam muitos dos autocratas hoje em ascensão no mundo.

Diferente do marxismo, o regime leninista de partido único não é uma filosofia, é um mecanismo para deter o poder. Ele funciona porque define claramente quem vem a ser a elite – a elite política, a elite cultura, a elite financeira.

O regime unipartidário bolchevique não era apenas antidemocrático: era também não competitivo e não meritocrático. Vagas nas  universidades, empregos no funcionalismo público e postos no governo e na indústria não cabiam aos mais diligentes ou aos mais capazes: cabiam aos mais leiais.

Como escreveu Hanna Arendt nos idos da década de 40, o pior tipo de regime unipartidário “invariavelmente substitui todo talento, quaisquer que sejam suas simpatias, pelos loucos e insensatos cuja falta de inteligência e criatividade é ainda a melhor garantia de lealdade”.

Ressentimento, inveja e, sobretudo, a crença na injustiça do “sistema” são sentimentos importantes entre os intelectuais da direita polaca.

A experiência fez com que Jaroslaw se desse conta de que não gostava de política, em especial da política do ressentimento: “Eu entendi o que era de fato fazer política: promover intrigas terríveis, vasculhar sujeira, fazer campanhas difamatórias.”

O apelo emocional de uma teoria conspiratória está em sua simplicidade. Ao explicar fenômenos complexos, esclarecer acasos e acidentes, ela propicia a sensação gratificante de se ter acesso privilegiado ou especial à verdade.

O apelo do autoritarismo é eterno.

O escritor venezuelano Moisés Naím visitou Varsóvia poucos meses depois que o Lei e Justiça [partido de direita] chegou ao poder. Pediu-me que descrevesse os novos dirigentes polacos: Pessoalmente, como eram? Enumerei alguns adjetivos: “raivosos”, “vingativos”, “rancorosos”. “Parecem”, ele disse, “ser iguaizinhos aos chavistas.”

Mais cedo ou mais tarde os perdedores contestarão o mérito da competição em si.

O regime autoritário ou mesmo o semi-autoritário – o regime de partido único, antiliberal - propiciam essa esperança: de que a nação será conduzida pelas melhores pessoas, as que merecem mandar, os quadros do partido, os que acreditam na Mentira de Médio Porte. Para tanto pode ser preciso subjugar a democracia, corromper a atividade empresarial ou arrasar o sistema judiciário. Mas nada disso é impossível para quem julga estar entre os que merecem mandar.

 

OUTUBRO/18

Artigo: Minha Fraqueza – Anotações desordenadas sobre a condição feminina

Por: Margarita Garcia Robayo

A subjetividade existe para além da consciência que possamos ter dela.

 

Artigo: Uma viagem de psilocibina – Eu tinha decidido me entregar a esse grande cogumelo

Por: Michael Pollan

Eu tinha no meu notebook um vídeo curto de uma mascara girando, usado num teste psicológico chamado ilusão da mascara côncava. Enquanto a mascara gira no espaço, o lado convexo se move para revelar o verso côncavo, e algo incrível acontece: a mascara oca parece saltar para se tornar convexa de novo. Esse é um truque produzido pela nossa mente, que presume que todo rosto é convexo, e então automaticamente corrige o que parece um erro – a menos que, como um neurocientista me disse, você esteja sob a influência de uma substancia psicodélica.


SETEMBRO/18
Artigo: Arquitetura do nevoeiro – A sobreposição explosiva de opacidade e nitidez, incerteza e convicção, no tempo da “pós-verdade”

Por: Guilherme Wisnik

Além de ser um riquíssimo espaço de pesquisa e de conhecimento em potencial, o ciberespaço é também – como meio de comunicação e integração – um “lugar” no qual as pessoas expõem muito menos dúvidas do que certezas.

Progressivamente mapeado e decodificado, o mundo se oferece a nós em imagens cada vez mais nítidas, nas quais as dúvidas e ambiguidades, ou zonas de sobras e incertezas, vão sendo apagadas.

De um lado, a opacidade  no que diz respeito à compreensão geral das coisas e à nossa capacidade de nos situarmos individual e coletivamente em um sistema-mundo globalizado que se tornou impalpável e especializado de mais. De outro, a nitidez excessiva no trato mais objetivo e cotidiano com as informações, promovida pelo aumento de acessibilidade, da proximidade e da ubiquidade. (...) É dessa imbricação estranha, explosiva e aparentemente contraditória entre nublamento e nitidez que surge o fenômeno da “pós-verdade”, com as fake news e a apropriação de formas discursivas da esquerda por grupos de direita.

Busca-se uma espécie de supernitidez do involuntário, da revelação inconsciente. E não seria essa a ilusão última trazida pelo árbitro assistente de vídeo (VAR) na Copa do mundo de 2018? A crença cientificista, de fundo messiânico, em uma verdade ultima a ser revelada por meio da aparelhagem-oráculo, redimindo o jogo de todas as ambiguidades, assim como das imperfeições humanas do arbitro?

Ao registrar o mundo com potentes lupas e microfones, a aparelhagem contemporânea consegue trazer à tona camadas antes ocultas da realidade, expondo-as como verdades finalmente reveladas.

Georges Bataille: “É sob a forma de catedrais e de palácios que a Igreja e o Estado se dirigem e impõem silencio às multidões.”

As informações têm que ser mantidas em constante movimento, pois os atributos que constituem a sua razão de ser e lhe conferem valor são a circulação e o intercambio. (...) é a informação que gera preço. O que, por sua vez, cria novas decisões de compra e, portanto, mais informação circulando de forma cada vez mais ágil.

Coletivo de design holandês Metahaven: “O enorme sucesso da nuvem é fornecer todas as coisas ao mesmo tempo.”

O que nos faz pensar que as raízes anarcolibertárias da internet estão sendo em grande medida cooptadas e invertidas por essa centralizada arquitetura de poder, baseada em sistemas fechados e caixas-pretas, que reprime, como argumenta Jonathan Zittrain, a capacidade generativa e inovadora da web.

Quantidades incalculáveis de mensagens e arquivos anexos são armazenados na nuvem a fundo perdido, por tempo indeterminado, ocupando “espaços” cada vez maiores e mais pesados. Toneladas de fotos de férias passadas, que nunca mais serão vistas por quem as fez nem por ninguém ficam guardadas, flutuando num futuro do pretérito imponderável, que constitui um lixo digital problemático em nossa sociedade arquivística.

O arquiteto Ram Koolhaas criou o conceito de junkspace como definição cáustica do mundo urbano atual. O junkspace, “é o resíduo que a humanidade deixa sobre o planeta”. Pois “o produto construído [...] da modernização não é a arquitetura moderna, mas antes o junkspace”. Isto é, aquilo que “sobra depois que a modernização terminou seu curso ou, mais precisamente, o que coagula enquanto a modernização está em progresso, seu efeito colateral”.

O junkspace é a forma física assumida por um mundo que desfez as fronteiras entre trabalho e lazer, ou entre o escritório e a vida doméstica, congelando-se numa espécie de sexta-feira informal interminável. (...) É em nome do acesso permanente à informação que aceitamos ser despojados de toa a nossa privacidade, tornando-nos cúmplices no rastreio das impressões digitais deixadas por nossas transações.

[Estamos em um] universo de fingimento e ficção baseado na naturalização de realidades ilusórias, a chamada “hipernormalização”. Exemplos atuais disso são as fake news e os ambientes de bolhas das redes sociais, nos quais se reúnem pessoas de opiniões coincidentes, que têm a falsa impressão de que seus ideais refletem a realidade da maioria da sociedade.

 

AGOSTO/18

Artigo: O Anjo Redentor (Doutor em Ciências Sociais pela PUC/RJ)

Por: Antonio Engelke

Padilha: “As ciências sociais não dispõem de modelos teóricos que incorporem, ao mesmo tempo, variáveis políticas, econômicas, tecnológicas, geográficas, climáticas e culturais. E é obvio que qualquer dessas variáveis pode alterar drasticamente a evolução de uma sociedade. Processos sociais são, pura e simplesmente, complexos demais para serem modelados.” (...) “A verdade é que todos os grandes dogmas da esquerda e da direita são mitos.”

Dizer que a espoliação sistemática da Petrobras tem a mesma origem e características que a “cervejinha do guarda”, reduzindo ambos os fenômenos a uma essência comum que os constituiria, não nos ajuda a compreender nem a dinâmica do saque à estatal, nem a do drible à multa de transito.

Foi o regime militar que deu força econômica e política às construtoras, pois os contratos recebidos permitiram às empreiteiras tornarem-se multinacionais e ampliarem suas atividades para outros ramos.

Mas, se o mecanismo determina em última instância o modo de funcionamento da política, ficamos sem ter como explicar os muitos avanços de nossa democracia. Segundo a lógica de Padilha, iniciativas como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a expansão da Controladoria-Geral da União ou a autonomia funcional do Ministério Público só poderiam ser deslizes ou cochiladas eventuais do mecanismo.

[Ele defende um] processo constante de aperfeiçoamento de arranjos regulatórios.

O filme veio saciar os anseios vingativos de uma população historicamente avessa aos direitos humanos, estressada pela violência cotidiana e, por isso, predisposta a aplaudir uma autoridade vista como impiedosa e incorruptível.

[Ele atribui a Tropa de Elite a intenção de condenar] a própria atividade política, vista como o inimigo cuja eliminação possibilitaria o estabelecimento de uma ordem social pacificada.

A obra de Padilha pode ser lida como uma das muitas respostas que vêm ganhando força em face da sensação de falência da representação democrática – populismo xenófobo de direita, populismo estatizante de esquerda, fascismos, anarcocapitalismo etc.

Narrativa simbólica que é, o mito político coloca em suspenso o problema da verdade.  (...) O mito político confere um sentido às circunstâncias que envolvem os indivíduos.

O mito convence justamente porque não aparece como discurso racional de persuasão.

Freud observa que o vínculo entre o indivíduo e o líder é de “enamoramento”. (...) O sujeito admira não tanto o líder em si, mas a projeção de sua imagem, idealizada, livre de qualquer desvio ou impureza.

O recalque em jogo é o do fantasma da servidão voluntária: narrativa mítica que permite ao indivíduo abandonar a própria autonomia em favor do Redentor, mas sem experimentar isso como submissão opressiva ou alienante.

A servidão voluntária atinge o sentimento de democracia, a democracia como uma forma de vida, na medida em que nega seus pressupostos de autonomia e participação popular.

Moro (ao lado de Lula) é atualmente a encarnação mais poderosa do mito do Redentor, razão pela qual as contradições de seus atos não despertam muito questionamento na esfera pública.

Não há registro de cruzada punitivista que, em nome da luta contra a corrupção, tenha sido bem-sucedida e feito terra arrasada do jogo político.

Todo discurso sobre redenção é também um discurso sobre a fragilidade da condição humana.

 

JUNHO/18

Artigo: Junho, Ano V

Por: Marcos Nobre

O que ocorre atualmente no mundo é um ajuste político global. Movimentos regressivos como os que vemos atualmente são tentativas de controlar mudanças de fundo, que são as que mais resistem ao controle.

Uma das maneiras de os sistemas políticos manterem o controle da transição é dando inicio a guerras, ditaduras e experiências neofascistas.

Uma das formas da convivência conflituosa é a que poderia ser caracterizada na fórmula adversários-parceiros.

Em sua luta pela sobrevivência, os sistemas políticos construíram uma estratégia sólida de chantagem: fundiram-se aos Estados nacionais. (...) Pretendem apagar qualquer diferença entre Estado, governo e Parlamento. (...) Só que, com a rejeição generalizada aos sistemas políticos tal como eles funcionam, essa simbiose resultou até agora em um abraço de afogados, em uma crise de legitimidade da ação do Estado.

Quem se beneficia direta e indiretamente de políticas públicas decisivas para manter sua posição social não vê nenhuma contradição em malhar o mesmo Estado de cuja ação se beneficia.

A ideia de uma renda básica universal, até pouco tempo debatida somente em círculos acadêmicos restritos, seja agora parte da agenda internacional.

Não haverá rede de proteção para todo mundo, não haverá cidadania para todo mundo.

A democracia não se democratizou, mas durou tempo suficiente para fazer surgir na sociedade divisões antes reprimidas ou mantidas invisíveis.

Nação, população e território deixaram de coincidir no imaginário político. Cada grupo tem a sua nação, incompatível com a nação do grupo vizinho.

[Esta] Será, portanto, uma eleição em que vão se conjugar a rejeição generalizada e difusa ao sistema político com a blindagem desse mesmo sistema político contra essa rejeição. Do lado do sistema político, será uma eleição que concede grande vantagem às maquinas partidárias. Do lado do eleitorado, tende a ser uma eleição com altos índices de abstenção e de voto brancos e nulos. Da parte do sistema político, tende a ser uma eleição com baixas taxas de renovação efetiva de representantes.

A cúpula do sistema político parece convencida de que alguma mudança de relevo é necessária, e apenas pretende que, dentro do possível, sejam os mesmos personagens da atual política que façam a mudança.

 

Artigo: A Nova Memória Coletiva

Por: José Roberto de Toledo

A praticidade matou a privacidade, e vai continuar matando.

Quanto mais tecnologicamente prática a vida se torna, menos privada ela é. Pergunte ao seu celular.

 

Artigo: O Grau Zero da Linguagem

Por Salman Rushdie

A passagem do tempo muitas vezes altera o significado de um fato. À época do Império Britânico, a revolta militar de 1857 na Índia ficou conhecida como “motim indiano” (...). Hoje, os historiadores indianos se referem ao acontecimento como uma “revolta” (...). A história não é escrita na pedra. O passado é constantemente revisado, em consonância com os pontos de vista do presente.

Em toda a obra de Jane Austen, as Guerras Napoleônicas mal são mencionadas; na obra imensa de Charles Dickens, a existência do Império Britânico só é reconhecida de passagem.

Como resistir à erosão da aceitação pública até mesmo de “fatos básicos”, fatos científicos e comprovados sobre (por exemplo) as mudanças climáticas e a vacinação infantil?

 

POESIA

Autor: Abbas Kiarostami (1940-2016)

 

Na tua ausência

converso

contigo,

na tua presença

converso comigo.

 

Hesitante

estou numa encruzilhada,

o único caminho que conheço

é o caminho da volta.

 

Aos olhos dos pássaros

o ocidente

é onde o sol se põe

o oriente

onde o sol nasce,

apenas isso.

 

 

MAIO/18

Artigo: O Herdeiro (sobre Guilherme Boulos)

Por: Fabio Victor

[Para o MTST] Só tem direito a pleitear moradia quem participa dos atos até o fim. A prática consta no regimento interno do MTST, segundo o qual “o critério principal para a conquista de moradia é a participação nas lutas e assembleias”.

 

Artigo: A guerra do PCC

Autor: Allan de Abreu

A facção proibiu o consumo de crack nos presídios, e passou a auxiliar os detentos “batizados”, chamados de “irmãos”, com advogados e cestas básicas para os familiares. A renda vinha do crime: o controle da compra e venda de drogas dentro dos presídios e o patrocínio de assaltos e seqüestros fora deles, sem contar rifas e uma taxa mensal, que atualmente é de 950 reais apelidada de “cebola”, que todos os filiados são obrigados a pagar.

[O valor do auxílio reclusão que nós contribuintes pagamos é hoje (ago/18) de R$ 1.3189,18 – é mais de 30% que o salário mínimo, atualmente de R$ 954,00!!!!]

O PCC (...) está infiltrado nas instituições do Estado (há dois anos, por exemplo, um membro do PCC foi acolhido no Condepe, o conselho de defesa dos direitos humanos de São Paulo).

 

Artigo: Histórias da Rússia – Uma viagem pelo país da revolução bolchevique cem anos depois

Por: Karl Ove Kanusgard

Karl pergunta: Já se passaram 100 anos desde a revolução. O que isso significa para vocês?

- Não damos bola para isso. Foram 100 anos sem Deus. Puseram abaixo todas as igrejas. Agora elas estão sendo reconstruídas e a gente pode ir à igreja sem medo.

O que fez você se voltar para a fé?

- Perguntei a mim mesma o que poderia fazer por ele depois da morte de meu pai. E, nos ensinamentos do islã, lê-se claramente: você deve dar esmolas aos pobres, fazer a peregrinação a Meca e sacrificar um bode.

Em Varsóvia, os edifícios destruídos na Segunda Guerra Mundial foram substituídos por réplicas imaculadas. (...) O velho não era velho, o novo não era novo. Onde estávamos então?

Uma história reina soberana, e todo e qualquer desvio em relação a ela é proibido. Foi assim à época dos czares, que censuravam livros e jornais; foi assim também sob Lênin; e assim é hoje ainda – na Rússia, jornalistas são presos regularmente e, por vezes, assassinados, sem mais.

As pessoas têm um mecanismo que as impede de falar sobre experiências ruins e as faz relutantes quando se trata de remexer no passado. (...) Nossa identidade é moldada por histórias, histórias sobre nossa própria história, sobre a história de nossa família, sobre a  história de nosso povo ou de nosso país.

Serguei Lebedev (Jornalista e romancista): A cada ano tentam reduzir a importância de 1917. fazem isso porque, em sua versão ideal dos acontecimentos, não houve revolução! Estão tentando estabelecer  um vínculo ininterrupto entre os czares e a Rússia de Stálin. De acordo com a  narrativa atual, espiões estrangeiros e traidores nos provocaram a matar uns aos outros 100 anos atrás. Isso não pode acontecer de novo. Portanto, temos que  nos unir; portanto, precisamos seguir a bandeira de Putin; portanto, temos que sacrificar os direitos civis, porque não pode acontecer de novo. Em linhas gerais, é isso.

Lebedev: Mas se você quiser entender o que aconteceu neste país nas décadas de 20 3 30, não pode ignorar a violência e os horrores dos cinco anos entre 1917 e 1921. não vai conseguir entender por que as pessoas estavam tão dispostas a matar umas às outras. Tem havido  uma espécie de guerra pela memória aqui na Rússia, uma guerra em que se disputa o que deve ser lembrado ou esquecidos.

Poucas coisas são mais belas que a esperança vã.

 

JAN/19

Artigo: Genocídio no Brasil – Em reportagem de 1969, o extermínio sem fim dos índios no Brasil.

Autor: Norman Lewis, jornalista inglês.

Jesuíta missionário José de Anchieta: “Não há melhor pregação do que a espada e a vara de ferro.”

Com a invenção do automóvel e do pneu de borracha (...) Manaus estava de volta aos negócios instantaneamente convertida em uma Gomorra tropical. (...) Nesse período grassavam orgias babilônicas em que as cortesãs tomavam banhos semipúblicos de champanhe, bebida que também era servida, em baldes, aos cavalos que venciam as corridas de turfe. Homens afeitos à moda enviavam suas roupas sujas – as de cama e as de baixo – para serem lavadas na Europa. (...) a relação sexual com uma virgem era tida como uma cura certeira para doenças venéreas.

Um elemento de competição estava presente quando se tratava de matar índios. De uma feita, 150 trabalhadores irremediavelmente ineficientes foram capturados, reunidos e cortados em pedaços, empregando-se uma pavorosa habilidade local que incluía o “corte do bananeiro”, em que a lâmina do facão era brandida para trás e para a frente decepando duas cabeças de uma só vez, e o “corte maior” em que um corpo era fatiado em duas ou mais partes antes que pudesse tocar no chão.

Algumas das histórias contadas sobre as casas-grandes do Brasil do século passado em seus dias de respeitável escravidão e licenciosidade romana desafiam a imaginação: um escravo acusado de algum crime de ínfima gravidade é castrado e queimado vivo; por ordem de uma senhora enciumada, os dentes de uma bela jovem são arrancados e seus seios amputados, apenas por garantia; outra moça, que descobrem grávida, é jogada viva dentro do forno.

Por que toda essa crueldade sem sentido? O que é que faz com que homens e mulheres, provavelmente de extrema respeitabilidade em sua vida cotidiana, torturem pelo mero prazer da tortura? Montaigne acreditava que a crueldade é a vingança do homem fraco por sua fraqueza; uma espécie de parodia doentia da bravura. “A matança após uma vitória é geralmente perpetrada pela ralé e pela criadagem que carrega a bagagem.”

Francisco Amorim Brito, encarregado geral da empresa seringalista Arruda, Junqueira & Cia., de Juína-Mirim, perto de Aripuanã, no rio Juruema, gostava de fazer troça dos índios, e quando um deles era capturado, levava-o para o que era conhecido como “a visita ao dentista”: o índio recebia ordens para “abrir a boca”, e ato contínuo, Brito sacava uma pistola e atirava dento.

Num outro episódio, Brito arrastou a mulher e pendurou com uma corda em uma árvore, de cabeça para baixo, as pernas bem abertas e com um só golpe do facão abriu o corpo dela ao meio.


sexta-feira, fevereiro 18, 2022

OS SALVADORES TARDIOS DAS TRAGÉDIAS DA VIDA

 "Em toda a história, uma profusão de obras artísticas foi inspirada pelo mesmo tema: a dor causada pela perda de um ente amado; a sensação de fragilidade, de sermos vitimas de fatores muito acima de nosso controle; (...)."

Marcelo Gleiser, em "O Fim da Terra e do Céu"

A expressão popular “engenheiros de obra pronta” identifica gente que tem solução pra tudo depois que uma desgraça ocorre e que, pretensamente, teve origem em uma “obra” mal feita. Nestes dias pós “tromba d’água” em Petrópolis, identifico uma nova categoria associada às tragédias da natureza, os “Salvadores Tardios das tragédias da vida”.

 Tais “Salvadores” têm as mais esdrúxulas, estapafúrdias, absurdas, simplistas soluções para que um eventual futuro evento não cause semelhantes trágicas consequências. Pior ainda, é ter que ouvir que se suas soluções tardias tivessem sido adotadas “nada disso teria acontecido”.

 Introdução feita vamos aos fatos.

Petrópolis não é só uma cidade serrana. Há muitas delas pelo Brasil que estão “sobre” planaltos e não “entre” montanhas. Esta, sim, é a nossa realidade. A topografia daqui é constituída quase que exclusivamente de encostas, vales e rios. Não há áreas planas extensas. Melhor dizendo, praticamente não há áreas planas. Ou moramos à beira dos rios, ou no sopé das montanhas, ou no sopé e na beira dos rios (como a casa onde nasci e morei por 20 nos), ou na encosta. Erra grosseiramente quem pensa que só pobres e remediados vivem nas encostas. A estes desavisados apenas cito que no centro da cidade há um morro denominado “Morro dos Milionários”. Guarde isso, carioca da Barra.

Tive que ouvir um “Salvador” me dizer que a culpa é das pessoas que colocaram suas casas na encosta onde “no futuro” ocorreria uma enxurrada que levaria tudo que encontrasse pela frente!!!! (Não foi essa a expressão que usou, mas outra com o mesmo sentido.)

Os “salvadores tardios” dizem que tudo poderia ser evitado se as prefeituras tivessem impedido a ocupação das encostas! Só pelos pobres, claro! E tinham que ter construído conjuntos habitacionais! Só para os pobres, claro! Ok, sabichão. Agora me diga onde: no sopé das montanhas ou na beira dos rios; ou... É fácil e maleficamente prazeroso aproveitar para jogar pedras nos adversários e desafetos!!!

Tenho uma notícia não muito agradável para estes “Salvadores Tardios”: alguns prédios de conjuntos habitacionais construídos e que não desabaram (Alto da Serra, Corrêas, Nogueira, e talvez em outros bairros) já foram interditados graças à avaliação de risco de desabamento.

Há uma ideia de que tais eventos são previsíveis. Sim, se considerarmos que tudo é possível. Alguns até são prováveis: a erupção de um vulcão, mas só daqueles cujo histórico já é conhecido; uma tsunami, mas só depois de já termos aprendido que um terremoto nas profundezas do mar provoca ondas gigantes; um tornado ou um furacão em regiões propensas a tais eventos, etc. Mas para a absurda maioria dos eventos, sejam fracos, fortes ou extremos, não temos informação suficientemente confiável para uma razoável previsão. No caso da terça-feira, 15/2/22, o máximo que a Defesa Civil fez foi emitir um “Alerta de chuvas fortes”, como vim a saber de relato de um diretor da empresa de ônibus Única. Esse fato é para todos os “Salvadores” entenderem a imponderabilidade da natureza.

Além dos “Salvadores Tardios” existe ainda a categoria dos “Sabichões sem Responsa”. Eles têm crítica para qualquer ação das entidades civis e de governos. Não importa qual seja a ação, vai aparecer um “Sabichão” pra dizer que está errado o que estão fazendo ou que estão errando na definição do que é mais prioritário: vasculhar a lama e escombros na busca de sobreviventes; recolher cadáveres para identificação; desobstruir as ruas para a circulação de veículos; criar espaços para abrigar os desabrigados; criar pontos de coleta de mantimentos, água, roupas etc.; montar equipes para ajudar os desalojados a salvar algumas coisas se ainda for possível; e tantas e tantas outras prioridades. Curioso é que o “Sabichão” só abre a boca agora, mas não foi capaz de se apresentar antes para assumir a condução das políticas públicas!!!

Prezados “Salvadores”, em que país vocês pensam que estão? Vocês me parecem os expoentes do que chamo de completos “Desavisados”! Devo lembrá-los que o Brasil é um continente (alguém já disse isso!) que acreditam estar em desenvolvimento (tenho cá minhas dúvidas), uma população em sua maioria inculta e pobre, manipulada há décadas por políticos estatistas em proveito dos bolsos próprios! Não bastante, ainda há o exército de burrocratas distribuídos por autarquias reguladores de quase tudo (um dia eles atingirão a excelência). Um amigo me conta que houve (ainda há?) um impasse: graças às legislações de preservação de tudo, não estavam (estão?) podendo retirar a lama e tudo o mais porque não há lugar para onde transferi-la, pois os órgãos reguladores não permitem!!! É, eu sei, difícil de acreditar! Vamos assumir que é intriga da oposição.

É óbvio que há o que pode ser evitado ou amenizado por ações de precaução. Identificá-las é a tarefa de políticos e técnicos. Mas catástrofes, como acidentes, como mortes naturais de toda espécie continuarão a ocorrer sem aviso-prévio. É a tragédia da vida. Ou vamos transferir todas as cidades à beira mar para o alto da serra por precaução contra possíveis tsunamis? Ôps! Isso não!!!

Enquanto nos aproximamos de 200 mortos nestes 3 dias após as chuvas torrenciais de terça-feira, estamos contabilizando quase 3 mil mortos por COVID. Com o que devemos nos sensibilizar mais? Não há resposta, é questão de foro íntimo. Só sei que famílias levarão anos para se recuperarem das mortes trágicas e repentinas de familiares e amigos. Chefes de família, homens e mulheres, terão que encontrar meios de reconstruírem suas rendas e suas casas (a maioria delas era propriedade do morador e, portanto, ele não pagava aluguel). Paralelamente a cidade levará alguns anos para se reconstruir e ser novamente atrativa ao turismo, mas essa tarefa só se realizará através de seus cidadãos trabalhadores e empreendedores que estarão envolvidos na recuperação de suas atividades, quiçá de restabelecer a ordem em suas vidas.

Fica o meu desejo de que os acasos da vida sejam favoráveis aos petropolitanos nos próximos anos!


P.S.: Hoje (19/2), pela manhã, terminei a leitura de "O Fim da Terra e do Céu", de Marcelo Gleiser, escrito em 2001. Por um acaso feliz, o último parágrafo tem muito, ou tudo, a ver com o que foi exposto neste meu texto e, por isso, o reproduzo a seguir.

"Nós vimos como processos regenerativos ocorrem a partir de eventos destrutivos: asteroides caem sobre a Terra extinguindo várias espécies mas permitindo que outras evoluam; estrelas são criadas a partir dos restos de outras, em um ciclo de renovação que se perpetua de galáxia em galáxia; até mesmo o nosso Universo tem uma história, cujo começo ainda não conhecemos e cujo fim talvez jamais vamos conhecer. Esses processos de regeneração não são uma exclusividade celeste, mas ocorrem à nossa volta todos os dias. Cada árvore que tomba dá origem a muitas outras; cada vida humana semeia muitas outras. Nós somos seres complicados, imaturos, capazes das mais belas criações e dos crimes mais horrendos. Talvez, ao aprendermos mais sobre o mundo à nossa volta, sobre os vários ciclos de criação e destruição que acontecem continuamente nos Céus e na Terra, sejamos capazes de crescer um pouco mais, de enxergar além das nossas diferenças, e trabalhar juntos para a preservação do nosso planeta e da nossa espécie. O primeiro passo é simples: é só olhar para os lados, com respeito, curiosidade, humildade e admiração. E não temos sequer um minuto a perder."